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27 junho, 2012

Experiências - Teatro III




Mais um trecho da peça maluca que estou escrevendo. Estou começando a gostar desses dois personagens.
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Carrasco: Queria que fosse possível nomear a sensação que sinto.




Rei: E no que se resume tal confusão de sentidos inomináveis? De certo são sublimes demais para serem expressados com meras palavras ou profundos demais para que a ousadia de vossa boca pronuncie-os sem que lhe contamine com pesar.



Carrasco: Nem um, nem outro, Rei Condenado. Eu diria que é densa e mordaz, vívida e asquerosa. Quase onipresente.



Rei: Não a tomaria por paixão?


Carrasco: Longe disso tanto quanto seu oposto.



Rei: Ódio, palpito eu... Há quem diga que o ódio é o amor insano. Talvez lhe caiba bem.



Carrasco: Não majestade. O ódio possui um direcionamento, uma origem, um propósito. O que sinto é mais contundente, e o sinto o tempo todo. Não é poético e nem divino. Mas sim mundano.



Rei: Por alguém especial?



Carrasco: Por quase todos. Quase não há distinção dentre aqueles que compartilham a negação de suas virtudes.



Rei: Ah, pois bem, isso tem um nome. Chama-se Misantropia e configura-se no desprezo pela própria natureza humana. E é mais comum do que pensas.



Carrasco: Deve de ser mesmo, pois a vejo em mim o tempo todo.



Rei: Como assim?



Carrasco: Oras, sou um carrasco. Escolhi matar pessoas...



Rei: Então mata aqueles que odeia...



Carrasco: Pelo contrário, Vossa Graça. Procuro matar apenas aqueles por quem nada sinto...



Rei: E os que odeia? À que destino reserva?



Carrasco: Reservo o mesmo destino que a vida reservou para mim: o definhar em desgosto de odiar a si próprio.




23 junho, 2012

Poesia - Anjo


Só um jogo de palavras que achei escrito em um caderno antigo. Postando aqui pra não jogar fora.



O anjo saltava de nuvem em nuvem, sem nunca tocar o chão.
O homem, maravilhado, falou ao anjo olhando para cima:
“Anjo zele por nós e venha nos fazer companhia!”
O anjo, com medo do homem, sorriu amarelo e disse que não.

20 junho, 2012

Diálogos IV

Mais uma das Crônicas de Coisas Comuns. Um dos diálogos mais marcantes que já presenciei. Confira os demais em I, IIIII.
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SEDUÇÃO

Ela sentou ao nosso lado. Suada, ofegante, insinuante. Estava quente como qualquer outro dia de Belém e o banco em que estávamos ficava sob a sombra de uma mangueira. Escolha óbvia.
Soltou os cadarços do antiquado par de patins, olhou pra nós e deu um breve sorriso desinteressado. Foi o bastante pra meu amigo.
  • Oi! Tudo bem? - começou o cortejo, meio sem jeito.
  • Tudo... - disse ela, sem morder a isca.
Ele a encarou e deu seu melhor sorriso. Aparelhos nos dentes, lentes grossas escondendo os olhos escuros. Tinha dezesseis anos, virgem, espinhento e inseguro. Nerd à moda antiga, na época em que ainda era errado e perigoso ser intitulado desse modo.
  • Gostei do piercing nos lábios – hesitou, visivelmente sem saber se acertara no comentário – seus pais não reclamam?
  • Sem problema. Meu pai odiou, mas eu não ligo – disse ela, meio que rindo. Parecia ter gostado do tópico. Típica adolescente rebelde sem causa. Do tipo que faria tatuagens anarquistas no futuro, vivendo em um apartamento com piscina e quadra de tênis.
Ele me olhou triunfante. Era seu meio silencioso de me dizer “Olha aí, bundão! Consegui!”. Respirou fundo, ajeitou os óculos e adotou uma postura artificialmente relaxada. Queria parecer largado, contraventor, um legítimo bad boy.


E então suicidou-se.
  • Ah, eu entendo! Você fez só pra chocar! Pelo simples prazer de transgredir as regras da sociedade!
Eu não vi os olhos dela revirarem pra cima, ou mesmo encararem os dele com uma expressão perplexa. Estava ocupado demais desviando o rosto e tapando os olhos com as duas mãos. Só a ouvi levantar e ir embora sem dizer nada.
  • Como é que é? – indaguei – “Pelo simples prazer de transgredir as regras da sociedade?” Mas que diabos? Você é retardado?
  • Ah... É difícil saber o que falar pras mulheres...

Bota difícil nisso!

19 junho, 2012

Nova logo da Esquina dos Mundos


Apresentamos a nova logo da Esquina dos Mundos.

18 junho, 2012

Ensaio sobre a juventude

Poucas coisas são mais divertidas (ou talvez irônicas) do que crianças que tentam se passar por adultos. Tanto as que imitam os comportamentos que não entendem, quanto as que fingem ser mais ingênuas do que realmente são.

Ainda assim, no fundo isso é um pouco triste... Vivemos em um mundo ácido demais. Falta transparência, inocência verdadeira. As novas gerações (e mesmo a minha) carece cada vez mais de coragem, sensibilidade, sensatez e discernimento.

Nos deparamos todos os dias com jovens e adultos infundidos pela paranóia decorrente de sua própria corrupção. Pela vaidade acrescida da ignorância. Pela futilidade cega presente nas opiniões vazias.

E no confrontar de tais verdades, mesmo as mais sóbrias e expoentes, suas reações são sempre as mesmas: amargas, reticentes, previsíveis.

Por fim pergunto-me, sem hipocrisia e pretensão, com o pesar de saber que também integro o imenso perfil social à qual critico: não seria essa a verdadeira geração perdida?


Frase da Semana

"A sutileza é uma linha tênue entre a inteligência velada e a covardia explícita."

17 junho, 2012

Pensamentos Urbanos



Eu olho para a cidade com olhos de quem vê algo estranho pela primeira vez. Não sei o que pensar. Há momentos em que vejo sujeira e solidão. Um enorme cadáver decorado por vaga-lumes. Também vejo vida, não bela e gentil, mas ébria. Desvairada.

A cidade é sempre uma puta. Um refúgio melancólico da espécie humana. Enormes brinquedos de metal e pedras, adornados com a ilusão do conforto. Ela tapa o medo do escuro, do frio, da terra onde éramos comida sobre duas pernas. Nossa tentativa pífia de destaque e santuário.

Mas não há opção que não ela. E não há nada além dela que não seja o intervalo entre outra de suas iguais.

14 junho, 2012

Soneto - Escócia

Na real, acho que, junto com os textos de teatro, esse é de longe o mais viajado e non-sense já postado no Astronauta. O formato é de soneto (primeira tentativa de fazer um seguindo a métrica correta) e o assunto abordado é a história da Pedra do Destino pelos ingleses, bem como a inalcançável independência escocesa.

Para quem não conhece a lenda por detrás da Pedra do Destino, vale muito a pena dar uma pesquisada e aprender mais sobre a história escocesa.


Para a terra do trono esvaziado,
fora um rei sem a coroa requerido,
ornar a escolha de dois dos preferidos
pela herança do direito desejado.

Mas ante falta de linhagem adequada,
e de reais interesses não bem quistos,
declarou-se a sucessão por prorrogada,
embarcou de volta ao lar tão logo visto.

Levou consigo, oculta, a régia pedra,
tal qual marco ancestral talhado à regra
sobre a qual os reis jaziam coroados.

Obteve, de modo vil, a obediência.
Privou o destino, pois, da independência.
Tornou a liberdade bem mais almejado.
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Sim, o ser vivo na foto sou eu e a foto foi mesmo tirada na Escócia. O castelo ao fundo é o Edinburgh Castle, onde reside (atualmente) a famigerada pedra.

12 junho, 2012

Experiências: Teatro II


Mais uma brincadeira com teatro, parte da mesma trama que apresentei na postagem anterior. Desta vez o diálogo entre o Rei Condenado e o Duque do Pecado.


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Duque: E onde estão seus irmãos?

Rei: À quais deles se refere?

Duque: Aos que compartilham a mesma linhagem que sua descendência. Aos não bastardos.

Rei: Não sei. De certo estão vagueando no ímpeto cego de ampliar a prole. Com eles pouco tenho em comum que não o sangue.

Duque: E a quais outros mais o termo abrange?

Rei: Os demais, do tipo que tive a chance de escolher. Imaculados pelos vícios que esta cabeça coroada herdara. Do tipo ao qual o termo se refere veladamente.

Duque: E donde vagam?

Rei: Certo distam, posso afirmar. Mas não sobre a terra. Distam no tempo. O último há mais tempo do que gostaria de lembrar. Impossível encontrar-lhes mesmo na poeira da carcaça de gusanos. Resquiem-se em livros, ou cânticos... Ainda que ambos não façam jus ao esquecimento que tenho deles.

Duque: Por que lhes fazem falta?

Rei: E não é claro?

Duque: Não...

Rei: Fato que não o é. E fato que não sei bem o porquê. Esperava que em parte alguém o soubesse. Como homens e mulheres fomos sempre tão diferentes, nunca houve um motivo semântico para tal afinidade. Mas como crianças seguíamos o mesmo ideal. E antes que perguntes-me, digo: o ideal do questionamento. Da mudança. Do não se acalentar com a rasura da razão. Éramos iguais em sede de revolução. Sonhávamos, devo dizer, com mundos perfeitos e povos instruídos; mas não sem amarrar os sonhos em ancoradouros de trabalho e parcimônia. Buscávamos o poder para implodir regimes e reconfigurar ideias.

Duque: E o que mudou? Refere-se a eles como outrem, num passado remoto, hoje distintos de si. A identificação com o passado faz de seu discurso vago... Apegado à uma paixão encarvoada.

Rei: Mudou que todos morreram. E a cada morte encarnada também desvaneceu uma ideia.

Duque: Cansou de buscar respostas?

Rei: Não. Cansei de fazer perguntas.

02 junho, 2012

Experiências: Teatro




Vou confessar uma heresia cultural: apesar da admiração perene que tenho pela mente e pelo renome do autor, nunca li Shakespeare. Conheço, de nome e de contexto, Hamlet, Rei Lear, Macbeth (a peça cujo nome não deve ser pronunciado), Sonho de Uma Noite de Verão, dentre outras de suas obras, mas nunca as li efetivamente.

Antes de ser julgado me defendo: cresci num meio estéril de teatro e sempre achei a dramaturgia muito mais expressionista do que onírica. Carregada de choque em detrimento do devaneio do espectador. Por isso, e por conta da repulsa velada que sempre senti pelo meio teatral ávido por revoluções sem fins práticos (e repulsivo, sob minha antiga ótica preconceituosa), fiz do meu universo artístico prioritário a literatura. A palavra escrita sim, em detrimento da fala, sempre foi aquela que deteve a verdadeira razão de ser da arte de contar histórias.

Mas meu desconhecimento e aversão ao teatro nunca justificou a falta de cultura dos clássicos. Ora, se eu podia ler uma peça, sem precisar assisti-la, por que não o fiz? Por ignorância, confesso.

Meu primeiro contato verdadeiro com o Shakespeare escrito foi ontem. Sob a forma de um pequeno volume puído de Hamlet, propriedade da Universidade Estadual de Londrina. Com o uso de técnicas de leitura dinâmica, li 4 páginas rapidamente e entendi brevemente sua estrutura. E foi isso o que mais me surpreendeu.

A segunda parte da heresia confessa neste post é justamente o fato de que, como pretenso escritor, nunca tinha me deparado com a construção do texto para teatro antes. E como é simples! Não que seja fácil, mas é simples... Introdução à cena, descrição dos personagens e diálogos. Nada de descrições ou narrações, apenas embate verbal. Mais objetivo impossível.

Logicamente, por mais impetuoso que seja tomar uma decisão como essa, resolvi arriscar um teste para escrever uma peça, ainda que curta. Escrevi duas cenas que vão constituir o que, futuramente, vai fechar a história sobre a condenação e o julgamento de um nobre decadente.

Aqui está uma destas cenas, o diálogo entre o Rei Condenado e o Carrasco. Espero que gostem. =]

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Carrasco: Apruma-te e contempla altivo o último trono com teu nome. Aquele que ornará seu crânio reluzente como sinete da queda de seu regime.

Rei: Não será, porém, o primeiro e nem o último crânio a dignar-se de tal honra.

Carrasco: Ainda assim fará dele o estandarte temporal da inviolabilidade da morte. Não te orgulhas de ser um ícone?

Rei: Toma-me por tolo? Vangloriar-se-ia tu, na pós-vida, como resto descarnado, de ser o ícone da própria execução?

Carrasco: E não o somos todos?

Rei: O conjunto o é, não o indivíduo em si. Vede a forca: a corda de cânhamo, oleado e torcido; o cadafalso de madeira resinada; as dobradiças rangentes de ferro... O retrato tétrico é constituído pelo propósito de sua função, não pela prática do exercício. Virgem ou de longo uso, o instrumento mostra a que veio. Não é o pescoço estrangulado do cadáver que amedronta, mas o laço onipotente que pende da corda vazia.

Carrasco: Queres incutir na forca o peso moral da condenação.

Rei: Não! Quero lembrar-te de que o laço, quando desocupado, é capaz ajustar-se tanto ao pescoço de reis quanto ao de miseráveis.

Carrasco: Tomas teu castigo como pouco nobre?

Rei: Talvez. Mas há de se convir que não há nada mais democrático do que a morte.