Seções

29 julho, 2016

Crônica - Legítima Defesa

Fazia tempo que eu não escrevia por hobby. Mas uma troca de frases desconexas com um amigo me deram uma ideia que eu não podia deixar escapar. Estou bem enferrujado e o tom podia ser outro, mas foi o que saiu em alguns minutos.
___________________

LEGÍTIMA DEFESA


Abordei ele num beco escuro, como manda a cartilha. Chovia. Nada original aqui.
Ele me olhou sem saber se devia. Na tensão amadora entre o encarar e o fingir que não viu. "Não há de ser comigo", penso que pensou.
"Só pode ser comigo..."
Eu ladrei, com a austeridade e violência que não me eram próprias e nem costumazes. "A arte ou a vida?"
Não houve, ou não ouvi, resposta.
"A arte ou a vida?", vociferei, com bile na boca. A agressão tinha notas suaves de vômito. "Responde, filho da puta!"
O palavrão fez efeito. Palavrões sempre fazem milagres.
"O que?! Sai daqui! Nem te conheço, caralho!"
Foi o bastante pra mim. Me aproximei como quem vê um estranho agredir o próprio filho. O abracei como alguém abraça um irmão, após meses de ausência. A faca entrou dura, como se não fosse afeita à barrigas alheias.
Ele não entendia, não havia como entender. Não era nada pessoal. "Aquele orçamento...", repeti o golpe.
Ele gritou. Na súbita mistura entre desespero e compreensão legítima.
"Você estourou o prazo!!!", golpeei de novo.
Lágrimas e gemidos em uníssono. Gorgolejo.
"E aquela porra de gorila de saia? Nós pedimos um urso de bermuda!", um, dois, três, quatorze golpes... Quase um clipe do U2.
"Minha arte é tudo pra mim...", discursou enquanto tombava. "E o briefing me engessou. Não tinha expressão e nuances... Mal trabalhei a Gestalt! E as cores? Vocês pediram marrom e salmão! Eu gosto de preto e amarelo!"
Houve catatonia no desfecho. O cliente encerrou o contrato. A peça foi um fracasso de mídia. "Gorilas saíram de moda!", gritei, buscando recobrar a razão. "As vendas da bolacha despencaram por sua causa!!!"
Ele olhou pra mim com os olhos vidrados. A dor, a agonia e a antipática presença da morte sentada em cima de sua barriga, deram lugar a uma indignação quase legítima. Inspirou fundo.
Esperei, pacientemente, a última defesa de sua amada liberdade criativa.
"O certo é biscoito!", disse triunfante.
Passei o resto da noite me empenhando em deixar o corpo irreconhecível.