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30 maio, 2011

Assoprando Cartuchos - Cidade de Guaxinins

O segundo conto da série Assoprando Cartuchos traz uma visão diferenciada (e de caráter sociológico, por assim dizer) de um dos maiores clássicos do horror dos games. Muitos identificarão o jogo logo de cara, mas como o tema abordado é relativamente comum, deixei uma dica no fim da história (bem como uma foto do jogo) pra facilitar aos leitores.

Divirtam-se.

Cidade de Guaxinins

Já é noite quando ele acorda. O frio soprar noturno balança sua cabeleira suja e desgrenhada, mas sua pele não responde com calafrios. Os olhos ressecados e opacos fitam o céu urbano sem focar em ponto algum. Gigantes de concreto, decorados por janelas fulgurantes, se erguem imponentes perfurando o breu. Prédios em chamas.

Ele engasga num murmúrio seco. A crosta de sangue coagulado em sua garganta faz com que sua voz soe como um lamento gutural. Tão baixo que mal pode ser ouvido graças ao uníssono de sirenes e tiros. E gritos. Muitos gritos.

Descoordenado como um paciente que acaba de sair do coma, ele se levanta. Os membros rijos e inchados rangendo e estalando à medida em que os músculos se rasgam.

Ele geme. Mais devido ao reflexo do ar sendo forçado, derradeiramente, para fora dos pulmões, graças à contração do diafragma, do que por dor ou qualquer outra sensação. Junto com a poça de sangue seco que deixa para trás, parte de seu cabelo e nacos de carne contaminada se amontoam no chão. Servirão de alimento para ratos, corvos e moscas. Novos vetores.

Reanimado, seu corpo readquire as funções fisiológicas mais urgentes e necessárias para a subsistência, enquanto descarta aquelas de uso secundário e irrelevante. Pensar não é mais prioridade; mas ele tem fome. Em pé, põe-se a caminhar trôpego, vagaroso, incansável. Uma interminável adaptação à sua nova condição.

E com um enorme buraco no pescoço, expondo-lhe a traquéia quase que totalmente – fruto da mordida de um de seus iguais – ele se mistura à horda irracional. Seu adorno pouco difere dos demais: mutilações e feridas expostas, marcas brutais de uma morte apavorante e rápida. Mastigado vivo até que a hemorragia e uma violenta infecção viral tomasse conta de si, ele morreu em agonia. Como qualquer animal que reluta em ser abatido. Homem, lobo do homem.

Desajeitado, ele persegue os vultos que debandam sem direção. Faminto, ele retalha e morde a tudo e todos, sem fazer distinção de sexo, raça, idade ou religião. Na turba todos são iguais. Vivos ou mortos-vivos, uma mera questão de fome.

E derradeiro ele segue, em meio à massa, em meio à moda. Infectado com o vírus da vida eterna, a doença lhe proporcionou um banquete de infindáveis pratos, e toda a eternidade para desfrutá-los.
Tiros e ferimentos não lhe preocupam mais, mesmo que lhe explodam a cabeça ele persistirá em seu cardume. São todos idênticos, todos um só. Exatamente como eram antes do contágio. A morte e a decomposição são só pretextos para que a fome seja compartilhada. O socialismo derradeiro. A comunhão perfeita de ideias, ações e metas.

Utopia.

Ele daria graças se pudesse. Você também. Mas ele não pode e você não o quer. Ele morto, você vivo, ambos em um panorama equivalente. Dividindo um futuro infectado e em ruínas.

Com a morte chovendo sobre o mundo, a única diferença entre vocês, o morto encharcado e o seco vivo, é apenas um Guarda-Chuva.


Confesso que queria deixar a palavra final do texto em sua versão original em inglês, Umbrella (que é o nome da organização responsável por todos os eventos acontecidos nos jogos da série), mas isso acabaria com o ritmo e prejudicaria a leitura do conto, então resolvi deixar sua tradução.

O mesmo aconteceu com o título do conto, já que Cidade de Guaxinins seria uma tradução livre de Raccoon City, o nome da cidade fictícia onde se desenvolvem as tramas dos 3 primeiros jogos.

27 maio, 2011

Mais BDM por aí

Mais um post no site da Editora Retropunk sobre O Reino de Bundhamidão. Desta vez trazendo informações sobre o sistema de regras do jogo e algumas inovações na construção dos personagens do cenário.

Confiram!

11 maio, 2011

Diário de Bundhamidão #4 - Bandidos Continuam Foragidos

Mais uma edição do Diário de Bundhamidão, com informações sobre o cenário. Direto do site da Editora Retropunk.


Clique na imagem para ampliar.

02 maio, 2011

Assoprando Cartuchos - Fantasma na Máquina



Conto da minha nova série, chamada "Assoprando o Cartucho", que traz histórias inspiradas em jogos de videogame famosos, sempre com abordagens diferenciadas.

O conto abaixo se chama "Fantasmas na Máquina" e é uma versão sombria de um dos maiores clássicos old school dos games. Acredito que muitos fãs vão reconhecer facilmente.


Fantasma na Máquina


O guincho da criatura rasgou o ar. Em um dos corredores escuros e abafados da nave o astronauta cerrou os dentes. Sua testa gotejando em suor frio e o coração batendo arrítmico. O temor irracional de estar imerso naquele pesadelo o fez desejar estar morto, assim como seus companheiros. Mas, como ele bem sabia, não haviam armas a bordo.

Correndo em desespero, ele amaldiçoou o vapor da própria respiração. O visor do capacete, constantemente embaçado, limitava sua visão já prejudicada pela escuridão da nave. O abastecimento de energia do setor em que estava fora cortado quando uma das válvulas de contenção atmosférica sofreu um pane, provavelmente causada pela fuga dos prisioneiros. Por conta da despressurização da nave e da ausência de oxigênio, o astronauta teve que vestir seu traje de segurança. Uma tecnológica roupa espacial amarela. Eficiente, porém extremamente chamativa.

Alertado por um novo guincho da criatura, o último sobrevivente da embarcação atravessou com pressa uma porta dupla de fecho automático. A complexa e claustrofóbica rede de corredores onde saiu logo esclareceu sobre seu paradeiro: estava em um dos andares inferiores da nave. Próximo ao depósito de suprimentos. Exatamente o local que procurava.

Imerso na escuridão absoluta, o astronauta não ousou ligar as lanternas auxiliares dispostas nas laterais do capacete. Entendeu que a luz, por alguma razão, atraía e agitava ainda mais as criaturas. Teria que se guiar pelos escassos alertas fosforescentes no chão, luzes de emergência amarelados, que indicavam o centro e as esquinas dos corredores. Até que chegasse ao seu destino, ainda teria uma pequena vantagem estratégica: os prisioneiros, formas de vida alienígenas de comportamento predatório, possuíam uma espécie de bioluminescência pálida. O que lhes concedia um aspecto fantasmagórico.

Os gritos o alertaram uma última vez quando a criatura surgiu por detrás de si. Em pânico, o astronauta percorreu os últimos metros que lhe separavam da sala que buscava. Seu coração em um ritmo ainda mais rápido do que seus passos. A porta cerrando em uníssono com outro guinchar do fantasma vermelho.

O astronauta se viu em uma sala branca, iluminada por baterias foto-voltaicas, independentes da central de alimentação da nave. Em uma das paredes havia um armário alto e estreito, com portas de vidro blindado. Apesar de trancado, as chaves jaziam na fechadura. Em seu interior, havia um pequeno dispositivo luminoso em forma de disco, pouco maior do que um pires. Aliviado por um breve instante, o astronauta agarrou o objeto e voltou-se para a porta.

O susto quase o derrubou para trás.

Por suas consistências etéreas e suas composições energéticas, os alienígenas podiam atravessar obstáculos materiais com a mesma facilidade com a qual um objeto maciço atravessa uma barreira de água. E naquele momento, apesar de ter demorado alguns minutos, a criatura havia conseguido transpor quase que completamente a sólida porta metálica da sala. Metade de sua pavorosa forma imaterial brotava para dentro do ambiente mal iluminado, como um enorme fungo pulsante saltando para fora de uma árvore morta. Por detrás de si, foi possível vislumbrar não apenas um, mas outros três fantasmas como aquele, de cores e tamanhos diferentes, atravessando a porta de metal.

Trêmulo, o astronauta sentiu a adrenalina inundar seu corpo como uma barragem envelhecida rompendo-se sob a pressão do tempo e das águas. Uma necessidade animalesca de fugir do local tomou conta de si, mas o homem sabia que naquele momento só haveriam duas opções: morrer ou adiar a morte.

Partindo ao meio o instrumento luminoso que havia encontrado, e torcendo para que a energia liberada perturbasse o campo magnético da nave, ativando os dissipadores de estática do sistema de emergência, o astronauta orou em silêncio enquanto praguejava aos gritos. O som de sua voz e os guinchos extraterrenos abafados pelos estalidos ensurdecedores da rede elétrica da nave. As tímidas luzes das baterias misturadas ao fulgor colorido das criaturas. Vermelho, índigo, laranjado e rosa tornaram-se azul pálido. Um clarão cegou o mundo temporariamente, levando com a visão parte de sua consciência.

Quando acordou, o astronauta se viu caído em uma sala chamuscada, com as portas abertas e parte das baterias derretidas. Por um motivo que desconhecia, a energia da nave parecia restabelecida. Mas antes que pudesse aliviar a tensão, lembrou-se de que a prisão energética, para onde ia a descarga de energia absorvida pelo sistema de defesa da embarcação, havia sido rompida por ação dos prisioneiros. Era apenas uma questão de tempo até que estes recuperassem sua forma fantasmagórica, desativassem novamente a energia da nave e partissem ao encalço do sobrevivente.

Seria apenas uma questão de tempo até sua morte inevitável.

Até lá, o astronauta poderia vagar sem sentido por um labirinto sombrio, em busca de artefatos iguais utilizou para eliminar as criaturas. Deveriam restar não mais do que quatro ou cinco deles.

“Talvez mais uma ou duas horas de vida...”, pensou.
Um trágico jogo de morrer ou adiar a morte.