Seções

07 junho, 2011

Despertar





Sob a nuvem negra em turbilhão, iluminada por escassos relâmpagos dourados e turquesas, Nínere viu o Miriate. Da neblina tênue e dançante da oniração, o deus primevo apareceu, como que saído de um sono imerso em vapor e memórias.

Seus pés, largos como as fundações de um castelo, enraizavam-se no solo seco ao avançar de cada passo. Para em seguida, com seu andar incessante, romperem os emaranhados de estacas vivas que brotavam de seu pisar. Milhares de criaturas, magras e pálidas, morriam e berravam ao serem esmagadas, logo após nascerem do contato da divindade com o chão infértil. Seus ciclos de vida se completavam nos segundos entre cada retumbar do colosso.

Sobre os pés, imensos nós de cordas desfiadas enrolavam-se nos tornozelos da criatura e amalgamavam-se em sua carne. As pernas, emaranhadas como as hifas de um enorme fungo, retorciam-se até uma bacia de madeira apodrecida e coral. Sobre esta havia um enorme corpanzil, largo como um braço do mar, que lembrava o casco recurvado de um navio. Seu corpo parecia uma enorme embarcação em pé, formada por grossas chapas de metal rebitado e coberto por ferrugem, recoberto por partes igualmente vastas de carne flácida e pulsante. Um vestígio oceânico irreconhecível.

Das costas da criatura nascia uma barbatana atravessada por um enorme mastro espiralado, donde se estendiam velas membranosas de cor mutável. Sua cabeça lembrava a de uma tartaruga monstruosa, recoberta por uma placa achatada, como a de um crustáceo. Adornando os olhos bulbosos e arregalados haviam fotóforos, e na lateral da cabeça abriam-se guelras de um vermelho vivo.

Ainda que lembra-se um delírio distante e incômodo, o tremor causado pelo avançar do Miriate não deixavam dúvidas sobre a materialidade de sua existência. Tão alto como uma montanha, a criatura mais parecia uma pilastra oceânica, cuja única função era sustentar o céu. Nínere jamais vira algo tão colossal e assustador. Bizarro e belo. Como se todos os elementos dos abismos marinhos reunissem-se em um só ser. Um sonho.

Foi quando o urrar do monstro lhe tirou do transe. O som que ecoou sobre a praia, e por muitos quilômetros de distância, era o uníssono estrondoso de um maremoto, silvos cetáceos e o grave apito de milhares de embarcações. O céu reverberou e os trovões da tempestade calaram-se em reverência.

As águas do planeta anunciavam a chegada de seu filho mais velho. O deus sem nome, a encarnação dos mistérios do abismo escuro, voltava a andar sobre a terra.

Um de seus braços desiguais, uma pinça lagostina de onde brotavam vermes tubiformes farpados e tentáculos com ventosas, agarrou-se à base do farol próximo, dando sustentação para que a criatura se arrastasse da água.

Com o outro, o deus atirou. De seu ombro de coral partiu, com o estampido de um torpedo, uma grossa corrente negra coberta por musgo e cracas. Em sua ponta, acorrentada pela cauda, havia uma enorme baleia azul viva; servindo como mão do Miriate.

O animal marinho cortou o ar em alta velocidade, guinchando tristemente enquanto caía em parábola. Seu corpo aterrissou na vila costeira, dividindo-a em dois por um rasgo de destruição e detritos marinhos. Gritos de desespero e incompreensão inundavam o ar noturno. Homens e mulheres corriam irracionalmente como um cardume assustado. Nada podia ser feito.

Nínere observava tudo de longe, atônita. Protegida pela escuridão e pela distância, sentiu seu corpo tremer por um frio que não era físico. Saberia, mais tarde, que fora uma das poucas sobreviventes da catástrofe. E que aquele seria apenas o primeiro dos Miriates a despertar de seu sono.

Havia chegada a hora de os deuses caminharem novamente sobre o mundo. Não mais como ideais, mas como monstros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O Astronauta das Marés agradece profundamente pelos comentários de seus leitores. Cada interação do público com o blog me motiva, ainda mais, a postar novidades e escrever textos de qualidade. Obrigado pela força galera.

Ah, e comentários que iniciem discussões serão levados adiante, caso o assunto seja de relevância.