Este conto foi escrito para o livro Terra Devastada, do meu grande amigo John Bogéa, e que foi publicado pela Editora Retropunk. Diferentemente do conto que abre o livro, que também é de minha autoria, este não integrou o livro por ter sido considerado "pesado demais", segundo a editora. E de fato o é.
Estou postando aqui porque achei ele ao revirar minha pasta de contos, e achei que já era a hora de publicar em alguma mídia, mesmo que seja o Astronauta.
Cabe deixar bem claro que todas as pessoas descritas abaixo são fictícias e não foram inspiradas em ninguém vivo ou morto. Eu não conheço, nunca conheci e nem sequer ouvi falar de um pastor evangélico chamado Odair. A única referência clara, no entanto, é à igreja citada sutilmente na última linha do texto.
Este é um conto de horror, com uma linguagem forte e contundente. Ele apresenta opiniões e descrições que podem chocar aqueles que se abalam facilmente ou que tem grande devoção religiosa, portanto fica registrado aqui o aviso. Se você não tiver estômago forte ou for carola, não leia!
Obs: A arte abaixo é do próprio John Bogéa.
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Quando o pastor Odair
ordenou que trancassem as três enormes portas duplas que davam
acesso frontal à igreja, não pode deixar de sorrir. O templo havia
alcançado a capacidade máxima de fiéis, e a presença das câmeras
que transmitiriam a programação ao vivo, para o país inteiro,
apenas confirmavam o sucesso de seu carisma. Aquele era seu show
particular, seu trunfo de fé. Mesmo sabendo que a soberba
representava o maior dos pecados cristãos, Odair regojizava-se por
dentro ao saber que muitos dos presentes estavam ali por causa dele,
e não por crença na religião.
– Vieram por mim! Não
por Deus – repetia em sua mente, sentindo calafrios.
Mas naquela noite a
arrogância do pastor tinha uma justificativa. Mesmo sabendo que o
frequente teatro armado para enganar milhares de fiéis acerca de
seus supostos poderes divinos ainda funcionava de modo eficiente, era
preciso uma atração inédita e impactante para ascender ainda mais
em seu posto. Odair sabia exatamente o que fazer.
Era comum que muitos
fiéis, ou mesmo outros indivíduos menos esclarecidos de outras
religiões, buscassem o templo em busca de apoio psicológico e
financeiro. Creditavam ao demônio todas as mazelas que a falta de
sorte e de instrução lhe causavam na vida. Trocavam a racionalidade
lógica da ação e reação, fosse ela financeira ou social, pela
explicação supersticiosa de que havia alguém responsável por toda
a sua desgraça. Precisavam de um bode expiatório, alguém que
fumasse, bebesse e traísse por eles. Por este motivo procuravam o
templo. Fariam de tudo por alguma forma de conforto. Mesmo que
precisassem pagar a Deus quantias exorbitantes do pouco dinheiro que
conseguiam para sustentar suas famílias.
Odair sabia disso. Sabia
exatamente como tudo funcionava. Sua faculdade em teologia fora
apenas um pretexto para um mestrado em psicologia e uma pós-graduação
em marketing. Via o templo como uma empresa e seus fiéis como
clientes. Venderia salvação e fé à preços módicos.
Convenientemente havia escolhido um bom produto: sua propaganda era
literalmente impecável; seu público, deveras passional; e a
concorrência, produto do “inimigo”. Não comprariam algo daquele
destruíra suas vidas, não é mesmo?
O templo era um
monopólio empresarial livre de impostos, censura e oscilações de
mercado. E Odair era um ótimo vendedor. Suas melhores vendas,
ironicamente, se davam quando seus clientes estavam nas piores
situações. Às vezes o peso da própria responsabilidade, na
destruição de suas próprias vidas, era grande demais para
suportarem. Nestes casos, os simples conselhos do demônio eram
insuficientes... Precisavam de algo mais. Se eximirem de
responsabilidades por completo, isentarem-se absolutamente da
culpa... Por isso existiam as possessões.
E nessa linha de
produtos o pastor era imbatível.
Geralmente os ritos se
limitavam à catarses comunitárias, donde milhares de indivíduos se
entregavam ao frenesi promovido por ritmos musicais hipnóticos,
técnicas avançadas de manipulação de massas e ao fervor da crença
na libertação de suas angústias. O ápice era o exorcismo de
alguém com visível alteração emocional e desequilíbrio
psicológico. Um teatro macabro que faria Freud engasgar-se,
abismado.
No entanto, no fundo
aquilo tudo eram apenas pessoas. Desesperadas e irracionais, mas
ainda assim pessoas. Um único deslize na condução de seu show e
cerca de vinte seguranças enormes e bem armados poderiam resolver o
problema.
Mas daquela vez era
diferente. A suposta possuída, uma jovem com cerca de 18 anos,
aparentava-se mais com os relatos medievais de possessão do que com
alguém que engravidou e não sabe como contar aos pais. Depois de
dois dias agindo de forma irracional, sem falar uma palavra
inteligível, vomitando sangue e apresentando chagas por todo o
corpo, a família convenceu-se de que era necessário pedir auxílio
religioso. A medicina deu lugar à fé.
Após ter mordido seis
familiares e pelo menos outros doze integrantes do templo, a jovem
foi amarrada à mando de Odair, e então levada para o palco por
detrás das cortinas. Tudo estava pronto para o mais macabro de seus
shows. Um exorcismo verdadeiro.
Suando frio, o pastor
contrariou os técnicos de segurança que recomendaram que as portas
não fossem trancadas durante a apresentação. Não queria que
curiosos ou membros de outras religiões dessem às caras no templo
após assistirem a transmissão ao vivo na TV. Para ele, tudo estaria
sob controle.
Com uma feição mais
séria e solene do que o normal, adornada por uma música de fundo
sombria tocada nos alto-falantes da igreja, o pastor caminhou até o
altar-palco e explicou aos fiéis sobre a situação daquela noite.
Um calafrio de orgulho e assombro repercutiu em seu corpo ao notar a
tensão estampada nas faces dos presentes.
– Eles amam o medo!
Precisam ver ele de perto para sentirem-se bem! Sentem um fascínio
mórbido pelo mal... – pensou Odair, enquanto finalizava sua
explicação, deixando pesar o silêncio sobre o público.
Em um gesto rápido e
brusco abriu as cortinas, levantando a voz ao anunciar a atração.
Mas ao invés de encontrar uma jovem amarrada no chão, o pastor
deparou-se apenas com cordas soltas, nacos de carne humana e um
rastro de sangue.
Quase instantaneamente,
um senhor gordo, sentado em um dos cantos do templo emitiu um grito
de pavor. Com a boca ensanguentada e os olhos vazios, a jovem
endemoniada pronunciou-se sobre ele. Dentes à mostra. Por detrás
dela, pelo menos outros quatro integrantes da igreja, que haviam sido
previamente mordidos, avançaram sobre o público apresentando o
mesmo comportamento.
Os relatos do que se
seguiu foram registrados em escassos dois minutos e meio de vídeo,
gravados por expectadores, antes da emissora tirar o programa do ar.
Mas os vídeos jamais chegaram à internet.
Quando o grupo da
Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Saúde chegou
ao local, as portas já haviam sido abertas pelo lado de fora e não
haviam mais vestígios de sobreviventes. O local, bem como as oito
quadras circundantes, foram classificadas como Zona de Quarentena...
Em três dias não havia
mais sinais de vida no bairro de Santo Amaro.
Zumbis *-*
ResponderExcluirRealmente contundente e, confesso, apavorante!
ResponderExcluirOs.: Não pude deixar de me lembrar de THE WALKING DEAD.