Ferriac Lampeart esfregou os olhos com violência, aturdido. O sangue que escorria da testa amalgamava-se pesadamente com seus longos cabelos dourados, tapando-lhe a visão. Mal teve tempo para se recobrar do corte, quando dois golpes o tiraram do chão. Uma joelhada seca no abdômen, seguido por uma cabeçada no rosto.
- Levante-se! Você está passando vergonha! Nem bem começamos e já está com os fundilhos no barro! – esbravejou o homem que lhe derrubara. Um enorme mouro, de queixo largo e barba escura, portando uma curiosa, e aparentemente inofensiva, adaga curva.
Algumas risadas debochadas ecoaram na arena vazia. Cerca de duas dúzias de homens e mulheres rústicos assistiam a peleja entusiasmados. De todos, apenas os dois homens engajados em combate, juntamente com um outro, mais distante que os demais, jaziam em silêncio. Concentrados na batalha, ambos calculavam cada movimento com uma precisão assustadora. Eram lobos em meio à hienas.
- Você só tem mais uma chance... – provocou o mouro – Caia no chão e estará tudo acabado!
Ferriac levantou-se com dificuldade. Seu preparo físico era invejável, mas a tensão da situação estava forçando seus músculos além do necessário. Respirou fundo, limpando o rosto com calma e prendendo os cabelos para trás, em um pequeno laço.
Desta vez não erraria o golpe. Não contra um alvo tão grande e tão lento. Não seria surpreendido pela estranha arma de seu oponente, e nem pelas circunstâncias em que se propôs a lutar. Uma luta sem plateia convencional, sem outros gladiadores, sem glamour e nem golpes ensaiados, sem feras domesticadas, sem mentiras. Esta seria uma batalha real, com sangue, cortes, fraturas e um imenso risco de morte.
Ferriac ficou surpreso em um primeiro momento com o convite da organização. Tinha ouvido rumores pela cidade sobre a passagem do grupo conhecido como a Cova-Rasa. Um conglomerado de rufiões, soldados dissidentes, bárbaros e ex-gladiadores que peregrinavam pelo continente em busca dos guerreiros mais bravos e fortes. E apesar de seus critérios de seleção e objetivos reais serem desconhecidos, a Cova mantinha a fama de oferecer oportunidades de integração para pouquíssimos indivíduos. Apenas os melhores e mais fortes, diziam.
Como um gladiador famoso, Lampeart não estranhou o fato de ter chamado a atenção da organização, mas sim o fato destes não testarem publicamente sua força. Oras, se o que a Cova mais visava era justamente atrair voluntários de grande força e técnica, que método seria mais eficiente do que fazer com que um de seus membros desafiasse e – supostamente – vencesse um gladiador de renome? Não seria mais producente?
A princípio tais dúvidas soaram como uma comprovação da falta de estratégia e visão por parte dos lideres da Cova-Rasa. Mas agora, lutando em uma arena clandestina e vazia, sob uma chuva gelada durante o entardecer, Ferriac se deu conta do que realmente pretendiam. E foi isso que lhe aturdiu. Queriam testar sua força em uma batalha verdadeira. Sem floreios, sem plateia, sem ensaios e falsetes.
Matar ou morrer. Simples assim.
Trêmulo, o gladiador largou sua espada e fitou o adversário, sem dizer nada. A vergonha e o medo da morte pulsando com violência em sua garganta. Ali não havia lugar para seu circo.
Imaginando que ouviria risos e comentários de deboche, Ferriac fechou os olhos com a mesma intensidade com a qual cerrou os punhos. Mas a única voz que ouviu foi a do homem alto e magro que observava a batalha de longe.
- Admirável... Apesar da fraqueza e do medo, você manteve a cabeça no lugar e soube admitir a derrota! O orgulho poderia ter lhe custado a vida, mas você desistiu para sobreviver em vergonha... – sua voz, apesar de grave, soava tão clara, que parecia sobrepujar o som da chuva – Sabe, não sei se você realmente entendeu a situação, mas o velho Rajaad aqui não era um adversário pra você! Ele está num nível que você está muito longe de alcançar...
Abrindo os olhos, o gladiador viu que todos os presentes não estavam olhando para ele, mas sim para o homem alto que falava – provavelmente o líder do grupo. Curioso, tentou controlar a ansiedade e prestar atenção.
- Mas você não está forte o bastante! As lutas ensaiadas dos espetáculos de arena não desenvolvem seu potencial! Você ainda não é digno de ser um de nós! Explore o que seu corpo e mente tem para oferecer, e quando estiver pronto, nos procure...
Sem reação, Ferriac apenas observou aquele pequeno grupo de pessoas debandar de modo tão rápido quanto surgiu, deixando-o à mercê da chuva e do escurecer. As palavras palpitando em sua mente, no mesmo ritmo do coração apavorado com a proximidade da morte. Em instantes, o atordoamento e o medo deram lugar à uma vergonha avassaladora e um ódio espumante. Sua boca, preenchida pelo gosto de sangue.
Ferriac Lampeart prontificou seu corpo a perseguir seus agressores e a lutar novamente. Mas logo a razão confrontou estes sentimentos. Ele teria que esperar. Treinar e evoluir. Agora tinha um objetivo. O tempo destilaria seu ódio irracional em fúria controlada. Mostraria a todos o quão poderoso era enquanto guerreiro.
Seria isso, ou uma cova rasa.
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