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29 agosto, 2009

Antropomorfismo

Eu vejo um tambor retumbando. O batuque surdo violando o silêncio noturno. Um ritmo primitivo, minha tribo. O calor da fogueira contrasta com o vento frio que sopra na planície. Está seco. Ficar perto do fogo resseca ainda mais. Minha boca resseca, em um misto de sal mascado e saliva espessa. Eu espumo sedento, ofegando, sem poder parar. Os pés sangram sobre terra e pó. Sinto a areia penetrando na carne. Minha raiz em contato contato com o mundo. Eu sou o mundo.

Eu toco o tambor. Vejo olhos e dentes no escuro. Vejo o fogo neles. Sinto o cheiro de ervas e fumo. De plantas virgens e secas, que nos levam a outro realidade. Sinto o cheiro de carne queimada. A caça sangra pendurada no centro do círculo. O cheiro das nuvens ao longe, levando a pouca água embora. Sinto fome. Frenesi.

Sou o tambor. Ressôo no escuro. De madeira tratada e couro curtido. Meu ruído se mistura aos escassos sons da penumbra. Um rosnado, insetos cantando, o vento e a areia, os passos da dança. O crepitar do fogo se misturando às canções. Vozes roucas e distantes, contando histórias antigas, na língua que poucos conhecem. O som do espírito do mundo, um ode às memórias que não puderam ser ouvidas.

Sou negro. Preto como ébano e pólvora. De porte vívido e olhos fundos. Injetados pelo devaneio da dança. Sou pai, caçador, de muitos anos e poucas vidas. Velho, ainda que novo. Abandonado no ninho do mundo. Longe dos murmúrios da selva que não nasceu verde. Meus deuses não são de concreto.

Vejo homens e mulheres em transe, dançando suas histórias. Vejo a presa abatida, celebrando a vida através da morte. Vejo a curiosidade do mundo, observando com muitos olhos. Vejo os sentidos se confundindo com delírios, as sensações se tornando oníricas. Vejo os elementos prestando homenagens, castigos. Vejo humanidade nas sombras e sombras na humanidade.

Sou a noite.

2 comentários:

  1. ou és a festa. isso depende muito de como se vê.

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  2. Acho que és um maconheiro. hahahahaha
    XD

    brincadeira, bom o texto.
    o/

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