Conto antigo, escrito em 2002, quando eu tinha apenas 15 anos. Apesar de não estar exatamente bem escrito, impressiona um pouco pela linguagem (considerando que eu era só um moleque quando escrevi) e pelo desfecho sinistro.
Serafim tinha 8 anos
quando apareceu pela primeira vez nos portões de casa, pedindo
alguns trocados para comprar remédios para sua mãe. Lembro-me que eram
remédios caros e eu não estava disposto a desembolsar tanto com uma
pessoa que nem conhecia; mas o garoto insistiu tanto que acabei
cedendo.
- De quanto você precisa? Uns trinta reais? Cinquenta? - perguntei com pressa, pois estava atrasado para o trabalho.
- Não tio, só dez mesmo! O resto eu me viro pra arrumar! - respondeu ele num sorriso branco escurecido. Fitando-me com seus incômodos olhos rubros de sangue, e saindo logo em seguida.
E assim as visitas se
tornaram constantes, intensificando sua frequência com o passar do
tempo. Nos primeiros dois anos, Serafim se limitava a bater na frente
de casa uma ou duas vezes por semana, no máximo. Sempre pedindo
educadamente, na medida que sua condição social permitia, coisas
simples que qualquer outro garoto de rua pediria: cobertores aos
trapos, roupas usadas, pratos de comida, brinquedos velhos e dinheiro
– este último com muita mais frequência do que os demais. Apesar
de minha desconfiança, Serafim sempre dizia usar o dinheiro para
comprar remédios para a mãe que, segundo ele, sofria de “tiabetes”.
Mesmo não acreditando, dificilmente eu me aborrecia com a história
e sempre o ajudava quando tinha condições.
E assim as coisas
prosseguiram nos três anos seguintes. Eu continuei a trabalhar na
movelaria e receber minha aposentadoria de servidor público; a
cidade continuou pacata e pouco movimentada; e o garoto continuou o
mesmo de sempre: magro, sujo e educado. Com o passar de todo este
tempo a única coisa que pareceu mudar nele foram os grandes olhos
vermelhos, ainda mais destacados em sua face encaveirada. Estes
pareciam mudar de tonalidade conforme o garoto mudava sua expressão,
variando entre um vermelho apagado a tons escarlates vivos e suaves
carmesins.
Outra coisa que, a meu
ver, havia mudado foi sua confiança, que aumentava excessivamente.
Pois quando não estava brincando na rua com as outras crianças,
estava em frente ao portão de casa, pedindo algo. Quase de forma
sagrada, em todos os dias úteis lá estava Serafim pedindo dinheiro
para os remédios da mãe. Eu já estava começando a me aborrecer
com a situação e não foram poucas as vezes em que inventei alguma
desculpa qualquer para negar ajuda. Muitas vezes, quando fiz isso,
senti nas profundezas de seus olhos que ele sabia que eu estava
mentindo. Era uma sensação estranha, que mais de uma vez me
atormentou durante a noite, antes do sono chegar.
Há dois meses, porém,
Serafim me fez um pedido um tanto incomum: queria tábuas e pedaços
de madeira, fossem eles velhos ou novos, não importando o tamanho ou
a quantidade. Eu estranhei o pedido de início, mas não pude negar
algo tão simples a alguém por quem eu tinha tanto apreço. Mesmo
porque lascas de madeira e chapas de compensado eram o que não me
faltavam, em decorrência de meu trabalho na movelaria. Aos poucos,
os pedidos diários de “trocados” foram dando lugar à tábuas e
paus velhos, e a desculpa do dinheiro para os remédios da mãe não
precisou mais ser utilizada.
Logicamente, qualquer um
estranharia o pedido de Serafim. Mas aquele era um período de férias
escolares, e as crianças estavam infestando as ruas com brinquedos
novos e artesanais, dentre eles a grande novidade: carrinhos de
rolimã. Isso me levou a imaginar que talvez o garoto estivesse
entretido fabricando seus próprios carrinhos, e até mesmo
vendendo-os para conseguir algum dinheiro. Algo que me deixou, de
certo modo, aliviado.
Mas pouco tempo depois,
durante uma semana chuvosa, o menino de rua veio a mim pedindo apenas
madeira – não mais comida ou dinheiro. A cada dia que passava
Serafim emagrecia mais, e mais vermelhos ficavam os seus olhos. Até
o dia em que ele não apareceu nos portões de casa, como sempre
fazia às cinco da tarde de todos os dias.
Para minha angústia,
fiquei sabendo naquela mesma tarde que a pequena igreja do fim da rua
tivera alguns de seus crucifixos roubados na noite anterior. Cheguei
então a conclusão de que o furtivo ladrão era o pequeno de olhos
vermelhos, por lembrar que todos os crucifixos da paróquia eram
feitos de madeira. Inúmeras dúvidas me vieram à cabeça naquele
momento, dentre elas o porquê do comportamento de Serafim.
Eram quase dez horas da
noite quando o olhar perturbador do garoto me veio em mente. E este
não me abandonou até que eu me levantasse da cama, vestisse uma
roupa apropriada e saísse rua afora atrás do garoto em sua moradia.
“Casa”, em si, não era a palavra perfeita para descrever o
barraco de apenas dois cômodos onde viviam o menino e sua mãe. Mas
era o modo mais educado de defini-la levando em conta a renda da
família. Do lado de fora desta, havia apenas uma lâmpada fraca que
mal iluminava o lugar, deixando a escura esquina com um aspecto ainda
mais mórbido do que o normal.
Espiei pela única
janela da construção, na esperança de conseguir ver alguém em seu
interior, mas o vidro estava demasiado sujo e trincado para que eu
pudesse enxergar algo com nitidez. Apenas uma tênue luz no interior
me chamou a atenção. Resolvi então entrar pela porta da frente,
furtivamente para não assustar nenhum dos moradores. Mas ao abri-la
me deparei com uma cena que me fez empalidecer instantaneamente e
sentir a pior sensação de minha vida.
Postado em cima de uma
velha mesa de madeira, junto à algumas velas já derretidas e aos
crucifixos roubados da igreja, estava um precário caixão feito de
tábuas velhas e peças de compensado, toscamente pregados. Dentro
deste, estava o corpo já sem vida da mãe de Serafim, rígido e
cinzento, como se tivesse morrido no dia anterior.
Como um cachorro
brutalmente açoitado pelo dono, eu fugi daquele lugar o mais rápido
possível e covardemente me refugiei em casa, atormentado pela visão.
Há mais de um mês
aconteceu aquela terrível experiência, e desde então as coisas
mudaram. Serafim raramente tem aparecido nos portões de casa para
pedir algo, e quando pede o faz sempre evitando certas palavras.
Remédios e madeira tornaram-se um tabu entre nós dois. Apesar disso
e de sua ausência, sempre o vejo brincando na rua com os outros
garotos, ainda que tenha adquirido um ar entristecido e amargurado.
Fiquei sabendo, através
dos vizinhos, que sua mãe sofria de diabetes, como o próprio garoto
costumava comentar, e que esta foi a causa de sua morte. Hoje em dia,
todas as vezes que ouço esta palavra sinto uma náusea profunda,
mesmo quando a imagem daquela noite não me vem nítida à mente.
Eu sei que de algum
modo, em algum lugar escuro, naquela noite, Serafim estava me
observando. Vejo isso todas as vezes em que encaro seus profundos
olhos vermelhos. Aprendi, por um motivo que não sei bem dizer, a
temer seu olhar e no fundo ele sabe desse medo. Nunca mais tive uma
noite sequer decente de sono desde então, meus olhos agora também
vermelhos me denunciam.
Hoje Serafim tem apenas
13 anos, eu 65. Mas sinto que perto dele não passo de uma criança.
O menino com nome de anjo é muito mais velho do que eu. Seus olhos
são a prova disso.
- M.B.B.F., 06/10/2002
Às vezes ficamos com raiva de coisas sem sentido, mas não vale a pena discutir... Às vezes precisamos mudar as coisas; outras, simplesmente deixar do jeito que está. É uma verdade dura e cruel, mas que rege as leis da vida.
ResponderExcluir?
ResponderExcluirConcordo com seu comentário, mas confesso que não entendi onde ele se encaixa com o contexto do conto no post. Explica ae.