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02 outubro, 2011

Serafim

Conto antigo, escrito em 2002, quando eu tinha apenas 15 anos. Apesar de não estar exatamente bem escrito, impressiona um pouco pela linguagem (considerando que eu era só um moleque quando escrevi) e pelo desfecho sinistro.



Serafim tinha 8 anos quando apareceu pela primeira vez nos portões de casa, pedindo alguns trocados para comprar remédios para sua mãe. Lembro-me que eram remédios caros e eu não estava disposto a desembolsar tanto com uma pessoa que nem conhecia; mas o garoto insistiu tanto que acabei cedendo.
    • De quanto você precisa? Uns trinta reais? Cinquenta? - perguntei com pressa, pois estava atrasado para o trabalho.
    • Não tio, só dez mesmo! O resto eu me viro pra arrumar! - respondeu ele num sorriso branco escurecido. Fitando-me com seus incômodos olhos rubros de sangue, e saindo logo em seguida.
E assim as visitas se tornaram constantes, intensificando sua frequência com o passar do tempo. Nos primeiros dois anos, Serafim se limitava a bater na frente de casa uma ou duas vezes por semana, no máximo. Sempre pedindo educadamente, na medida que sua condição social permitia, coisas simples que qualquer outro garoto de rua pediria: cobertores aos trapos, roupas usadas, pratos de comida, brinquedos velhos e dinheiro – este último com muita mais frequência do que os demais. Apesar de minha desconfiança, Serafim sempre dizia usar o dinheiro para comprar remédios para a mãe que, segundo ele, sofria de “tiabetes”. Mesmo não acreditando, dificilmente eu me aborrecia com a história e sempre o ajudava quando tinha condições.

E assim as coisas prosseguiram nos três anos seguintes. Eu continuei a trabalhar na movelaria e receber minha aposentadoria de servidor público; a cidade continuou pacata e pouco movimentada; e o garoto continuou o mesmo de sempre: magro, sujo e educado. Com o passar de todo este tempo a única coisa que pareceu mudar nele foram os grandes olhos vermelhos, ainda mais destacados em sua face encaveirada. Estes pareciam mudar de tonalidade conforme o garoto mudava sua expressão, variando entre um vermelho apagado a tons escarlates vivos e suaves carmesins.

Outra coisa que, a meu ver, havia mudado foi sua confiança, que aumentava excessivamente. Pois quando não estava brincando na rua com as outras crianças, estava em frente ao portão de casa, pedindo algo. Quase de forma sagrada, em todos os dias úteis lá estava Serafim pedindo dinheiro para os remédios da mãe. Eu já estava começando a me aborrecer com a situação e não foram poucas as vezes em que inventei alguma desculpa qualquer para negar ajuda. Muitas vezes, quando fiz isso, senti nas profundezas de seus olhos que ele sabia que eu estava mentindo. Era uma sensação estranha, que mais de uma vez me atormentou durante a noite, antes do sono chegar.

Há dois meses, porém, Serafim me fez um pedido um tanto incomum: queria tábuas e pedaços de madeira, fossem eles velhos ou novos, não importando o tamanho ou a quantidade. Eu estranhei o pedido de início, mas não pude negar algo tão simples a alguém por quem eu tinha tanto apreço. Mesmo porque lascas de madeira e chapas de compensado eram o que não me faltavam, em decorrência de meu trabalho na movelaria. Aos poucos, os pedidos diários de “trocados” foram dando lugar à tábuas e paus velhos, e a desculpa do dinheiro para os remédios da mãe não precisou mais ser utilizada.

Logicamente, qualquer um estranharia o pedido de Serafim. Mas aquele era um período de férias escolares, e as crianças estavam infestando as ruas com brinquedos novos e artesanais, dentre eles a grande novidade: carrinhos de rolimã. Isso me levou a imaginar que talvez o garoto estivesse entretido fabricando seus próprios carrinhos, e até mesmo vendendo-os para conseguir algum dinheiro. Algo que me deixou, de certo modo, aliviado.

Mas pouco tempo depois, durante uma semana chuvosa, o menino de rua veio a mim pedindo apenas madeira – não mais comida ou dinheiro. A cada dia que passava Serafim emagrecia mais, e mais vermelhos ficavam os seus olhos. Até o dia em que ele não apareceu nos portões de casa, como sempre fazia às cinco da tarde de todos os dias.

Para minha angústia, fiquei sabendo naquela mesma tarde que a pequena igreja do fim da rua tivera alguns de seus crucifixos roubados na noite anterior. Cheguei então a conclusão de que o furtivo ladrão era o pequeno de olhos vermelhos, por lembrar que todos os crucifixos da paróquia eram feitos de madeira. Inúmeras dúvidas me vieram à cabeça naquele momento, dentre elas o porquê do comportamento de Serafim.

Eram quase dez horas da noite quando o olhar perturbador do garoto me veio em mente. E este não me abandonou até que eu me levantasse da cama, vestisse uma roupa apropriada e saísse rua afora atrás do garoto em sua moradia. “Casa”, em si, não era a palavra perfeita para descrever o barraco de apenas dois cômodos onde viviam o menino e sua mãe. Mas era o modo mais educado de defini-la levando em conta a renda da família. Do lado de fora desta, havia apenas uma lâmpada fraca que mal iluminava o lugar, deixando a escura esquina com um aspecto ainda mais mórbido do que o normal.

Espiei pela única janela da construção, na esperança de conseguir ver alguém em seu interior, mas o vidro estava demasiado sujo e trincado para que eu pudesse enxergar algo com nitidez. Apenas uma tênue luz no interior me chamou a atenção. Resolvi então entrar pela porta da frente, furtivamente para não assustar nenhum dos moradores. Mas ao abri-la me deparei com uma cena que me fez empalidecer instantaneamente e sentir a pior sensação de minha vida.

Postado em cima de uma velha mesa de madeira, junto à algumas velas já derretidas e aos crucifixos roubados da igreja, estava um precário caixão feito de tábuas velhas e peças de compensado, toscamente pregados. Dentro deste, estava o corpo já sem vida da mãe de Serafim, rígido e cinzento, como se tivesse morrido no dia anterior.

Como um cachorro brutalmente açoitado pelo dono, eu fugi daquele lugar o mais rápido possível e covardemente me refugiei em casa, atormentado pela visão.

Há mais de um mês aconteceu aquela terrível experiência, e desde então as coisas mudaram. Serafim raramente tem aparecido nos portões de casa para pedir algo, e quando pede o faz sempre evitando certas palavras. Remédios e madeira tornaram-se um tabu entre nós dois. Apesar disso e de sua ausência, sempre o vejo brincando na rua com os outros garotos, ainda que tenha adquirido um ar entristecido e amargurado.

Fiquei sabendo, através dos vizinhos, que sua mãe sofria de diabetes, como o próprio garoto costumava comentar, e que esta foi a causa de sua morte. Hoje em dia, todas as vezes que ouço esta palavra sinto uma náusea profunda, mesmo quando a imagem daquela noite não me vem nítida à mente.

Eu sei que de algum modo, em algum lugar escuro, naquela noite, Serafim estava me observando. Vejo isso todas as vezes em que encaro seus profundos olhos vermelhos. Aprendi, por um motivo que não sei bem dizer, a temer seu olhar e no fundo ele sabe desse medo. Nunca mais tive uma noite sequer decente de sono desde então, meus olhos agora também vermelhos me denunciam.

Hoje Serafim tem apenas 13 anos, eu 65. Mas sinto que perto dele não passo de uma criança. O menino com nome de anjo é muito mais velho do que eu. Seus olhos são a prova disso.

- M.B.B.F., 06/10/2002

2 comentários:

  1. Às vezes ficamos com raiva de coisas sem sentido, mas não vale a pena discutir... Às vezes precisamos mudar as coisas; outras, simplesmente deixar do jeito que está. É uma verdade dura e cruel, mas que rege as leis da vida.

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  2. ?

    Concordo com seu comentário, mas confesso que não entendi onde ele se encaixa com o contexto do conto no post. Explica ae.

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