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29 setembro, 2009

Conto - O Verdadeiro Dono da Noite

A bruxa fitou-me nos olhos. Sua retina rasgada por infecções e irritações alquímicas, combinada à córnea opaca e leitosa, não me deram certeza de que esta podia enxergar meu rosto. Mas cega ou não, ela vislumbrava o interior das janelas de minha mente.

O hálito pútrido, da boca quase sem dentes, empesteou o ar instantaneamente, me forçando a prender a respiração para não ceder à náusea. O nariz adunco, oleoso e inflamado por inúmeros furúnculos e erupções, por pouco não encostava em meu rosto. Graças a minha situação, caído no piso úmido e frio da cabana, com as mãos apoiadas para trás para manter-me sentado, a doentia criatura recurvada e corcunda tornava-se pouco maior do que eu. A proximidade física e a sensação de impotência me preencheram com um misto incômodo de pavor e asco. Eu era sua presa.

Com uma força surpreendente para uma criatura de aparência tão debilitada, a velha segurou meu rosto com uma de suas mãos, já tão enrrugadas que nem pareciam revestidas de pele humana. As unhas negras e sujas, decoradas com sangue coagulado, enterraram-se com facilidade em minha carne. Meu pescoço estalou com o puxão violento que veio a seguir.

"Criança... Veio morrer ou matar por mim? - perguntou a criatura, com uma voz estridente e falha. Seu olho mais conservado me analisou por completo.

Minha falta de reação, somada à expressão de pânico que ostentei, não deixaram dúvidas quanto a natureza de minha visita. Eu era apenas um incauto, acometido por curiosidade súbita, dentro do covil de um ser nascido de um pesadelo. Sem propósito ou motivos, minha jornada terminaria tragicamente.

As unhas se cravaram com mais força, fazendo o sangue esvair de meu queixo e pescoço. "Veio pra morrer... És um presente da noite, pra mim!" - a voz soou mais arrastada desta vez, quase como um pensamento em voz alta.

Exitando, talvez intrigada com a situação, a velha deteve mais um olhar demorado em meus olhos. A iluminação mórbida da lareira próxima me proporcionaram um vislumbre lúgubre do local e de minha captora. Pude notar seus cabelos apodrecidos recaindo-lhe sobre parte da face, tingidos displicentemente por fungos esverdeados e adornados por pequenas carcaças de animais e fezes ressecadas, presas acidentalmente. Não haveria no mundo, sobre o inferno ou fora dos pesadelos, refúgio mais imundo para uma criatura.

Um segundo puxão violento me tirou do transe. Meu pescoço e ombros estalaram, como se os ossos tivessem sido retorcidos abruptamente por debaixo dos músculos. Resetei-me para frente, as duas mãos segurando meu corpo contra o chão. Uma risada histérica retumbou na choupana.

Com um movimento frágil e trêmulo, a bruxa sacou uma adaga enferrujada, de dentro dos trapos que vestia. A lâmina cega, escurecia pelas sombras do local e por uma grossa camada de sujeira, desfilou em frente aos meus olhos, pouco antes de ser levada à língua áspera da criatura. Um filete de sangue purulento gotejou sobre a lâmina, enquanto sua detentora pôs-se a recitar algum encanto profano, que meus ouvidos jamais escutariam novamente.

Eu me tornara parte de um ritual. Um ingrediente fundamental de uma arte proibida. Um sacrilégio.

Sem forças para reagir, em parte pelo extremo cansaço físico e mental que o dia exaustivo me impusera, em parte pelo despreparo causado pela surpresa, em parte graças ao maligno feitiço causado por seu olhar; me resignei a aceitar tal destino.

Acompanhando o breve balbuciar que finalizou a conjuração do feitiço, uma lâmina desceu vertiginosamente rumo à vítima da ocasião.

Sangue pôs-se a jorrar...

- O Homem Que Se Chamava Mabreu, Capítulo 5: Tudo Morre.

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