Fazia tempo que eu não escrevia por hobby. Mas uma troca de frases desconexas com um amigo me deram uma ideia que eu não podia deixar escapar. Estou bem enferrujado e o tom podia ser outro, mas foi o que saiu em alguns minutos.
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LEGÍTIMA DEFESA
Abordei ele num beco escuro, como manda a cartilha. Chovia. Nada original aqui.
Ele me olhou sem saber se devia. Na tensão amadora entre o encarar e o fingir que não viu. "Não há de ser comigo", penso que pensou.
"Só pode ser comigo..."
Eu ladrei, com a austeridade e violência que não me eram próprias e nem costumazes. "A arte ou a vida?"
Não houve, ou não ouvi, resposta.
"A arte ou a vida?", vociferei, com bile na boca. A agressão tinha notas suaves de vômito. "Responde, filho da puta!"
O palavrão fez efeito. Palavrões sempre fazem milagres.
"O que?! Sai daqui! Nem te conheço, caralho!"
Foi o bastante pra mim. Me aproximei como quem vê um estranho agredir o próprio filho. O abracei como alguém abraça um irmão, após meses de ausência. A faca entrou dura, como se não fosse afeita à barrigas alheias.
Ele não entendia, não havia como entender. Não era nada pessoal. "Aquele orçamento...", repeti o golpe.
Ele gritou. Na súbita mistura entre desespero e compreensão legítima.
"Você estourou o prazo!!!", golpeei de novo.
Lágrimas e gemidos em uníssono. Gorgolejo.
"E aquela porra de gorila de saia? Nós pedimos um urso de bermuda!", um, dois, três, quatorze golpes... Quase um clipe do U2.
"Minha arte é tudo pra mim...", discursou enquanto tombava. "E o briefing me engessou. Não tinha expressão e nuances... Mal trabalhei a Gestalt! E as cores? Vocês pediram marrom e salmão! Eu gosto de preto e amarelo!"
Houve catatonia no desfecho. O cliente encerrou o contrato. A peça foi um fracasso de mídia. "Gorilas saíram de moda!", gritei, buscando recobrar a razão. "As vendas da bolacha despencaram por sua causa!!!"
Ele olhou pra mim com os olhos vidrados. A dor, a agonia e a antipática presença da morte sentada em cima de sua barriga, deram lugar a uma indignação quase legítima. Inspirou fundo.
Esperei, pacientemente, a última defesa de sua amada liberdade criativa.
"O certo é biscoito!", disse triunfante.
Passei o resto da noite me empenhando em deixar o corpo irreconhecível.
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