Os dois prostraram-se diante da parede rabiscada e ficaram em silêncio por alguns instantes, de mãos dadas. A menina, em sua curiosidade, se adiantou.
- O que há por detrás da porta, tio? - perguntou Anabela.
- O que você gostaria que existisse, Ana?
- Posso escolher? Sério que posso escolher?
- Sim! E o que vai ser? Flores em um belo jardim? Bonecas maravilhosas que dançam e falam? Um cachorro enorme de pêlo dourado?
- Não, tio! Isso não! - respondeu Anabela. - Atrás da porta tem que ter pessoas...
Oswaldo sorriu. A resposta não era exatamente o que esperava, mas estava tomando um rumo interessante.
- Que tipo de pessoas, Ana? - perguntou rindo.
- Pessoas cegas, tio. E baixas. E de voz suave, que nunca se altera. E elas também são todas cinzas.
O sorriso do tio murchou com as palavras da sobrinha. A boca se apertou em um esgar de preocupação e perplexidade.
- Cegas? Que tragédia menina! Por que cegas? E cinzas? Por que deste jeito?
Ana olhou para os próprios pés, segurando as duas mãos para trás do corpo. O tom de voz do tio lhe intimidara e seu olhar pesou sobre si com repreensão. Mas ela sabia exatamente o porquê de ter dito aquilo. Sabia que suas pessoas perfeitas eram a coisa certa a existir.
- Porque elas seriam felizes tio. Cegas, nunca saberiam se são diferentes ou iguais. Não enxergariam que são feias e que não são como nós, e mesmo que enxergassem a si mesmas isso não mudaria sua cortesia. Pois a voz seria gentil e a cor da pele não importaria.
O adulto engoliu a seco. O semblante austero, os olhos tristes. Lambeu os lábios ressecados e piscou com um pesar demorado. Luzia luto em seu coração.
Na imaginação da criança onde deveriam haver flores e cores, perfumes e sonhos, morava um vislumbre enevoado dos horrores do mundo. Pessoas cinzas, cidadãos cegos, um povo que não pode e não deve expressar o que sente, apenas para não ferir. Seriam capazes de fazer o mesmo sem tais condições impostas?
Os pensamentos pairavam como uma nuvem de chuva noturna e fria sobre Oswaldo, quando Anabela o interrompeu.
- E você, tio? O que queria ver por detrás da porta?
A resposta veio automática. Com um amargor perene disfarçado pelo carinho doce que sentia pela sobrinha.
- Uma mesa com desjejum, Ana. Como a que nos espera em casa! Vamos! Chega de delírios por hoje.
E partiram.
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