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28 abril, 2023

 PANTUFA


Tudo começou numa inocente trapaça:

Velha, feia e suja. Não te queriam nem de graça.

Mas como história inspiradora, um anjo logo apareceu.

E o enganado pela dupla, óbvio, fui eu.


Fingindo ser filhote. "Um pobre bebezinho."

Precisando de um lar, implorando por carinho.

Te colocaram em minha vida como um fardo inesperado.

Tomou conta do sofá. Justamente do meu lado!


Com o tempo - e alguns banhos - fui cedendo à simpatia:

Ronronando no meu colo. Sempre a primeira a dar 'bom dia'.

E como pra retribuir, encontrou sua vocação:

Foi porteira, foi padeira, testadora de colchão.


Com rinite todo dia. Eu reclamava sem saber.

Da injustiça que seria, ir dormir sem ter você.

Sua mãe por outro lado, pra ninar até cantava.

"Com a Tufa no meu colo, os problemas não são nada!"


Os anos se passaram e o amor só foi crescendo.

Mas a esquecida, inevitável, enfim chegara com o tempo.

Ronronando até dormir, ontem você partiu.

O sofá voltou pra mim. Mas o lugar ficou vazio.


Vou lembrar, eternamente, do seu olhar apaixonado.

Do cheiro de pelúcia velha. Do "ké" que não era miado.

Agradecerei todos os dias pela mentira abençoada.

De adotar uma gatinha que era velha disfarçada.

01 junho, 2022

Segredo

A criança escondeu o último ovo de anjo no único lugar em que Deus se fez esquecer.

22 junho, 2021

"Iguais"

O oceano culpa o céu pela chuva que molha o mar. O céu culpa o oceano pela brisa que dispersa as nuvens. Ambos azuis. Ambos molhados. Ambos turbulentos.

01 setembro, 2019

Espetáculo

Eis que as cortinas se abrem e o local começa a lotar. O circo velho e desgastado abre as portas novamente, ou talvez tenha colocado algo novo em cartaz. Sob as trombetas dos plantões, soa a fanfarra anunciando o espetáculo da política nacional.

A mídia mágica fascina com shows de ilusionismo, tirando fatos da cartola e fazendo sumir elefantes inteiros, quando inconvenientes. Os malabaristas jogam alianças para o alto e, habilidosamente, manobram cada uma delas sem que estrebuchem no chão.

Trapezistas alçam voo rumo aos abraços acalorados de seus cúmplices. Atentos aos apertos de mãos frouxas, mas resguardados pelas imensas redes de proteção, tramadas por seus antecessores.

Os encantadores de feras, travestidos de artistas e líderes de partidos, manipulam habilmente a ferocidade primitiva e acerebrada de cada animal do picadeiro digital. As bestas rugem, berram, choram e gritam, compartilhando sua raiva irracional com todos que puderem lhes ouvir (ou ler). Sua fúria inflamada soa voraz para os que os assistem em segurança, mas basta um afago de seus donos para que lambam-lhes as mãos e sentem em silêncio. Amestrados por um naco de atenção.

O mestre de cerimônias tem muitas faces, fazendo jus à fama que o precede. Ele apresenta, anonimamente, a polêmica do dia. "O admirável homem forte (do povo?)"; "O vilanesco monstro da guerra (civil?)"; "A injustiçada mulher barbada (nem sempre mulher, nem sempre barbada)"; "A criatura de duas cabeças (ou seriam partidos?). Mas a maior atração da noite é, impreterivelmente, o Inimigo Número 1.

A figura carismática ou enigmática que inspira medo. Homem que galgou ao poder por subterfúgios, mulher que foi ex-terrorista, operário mutilado, caçador de marajas, traidor, golpista, atual senador, demônio. Qualquer que lhe seja a alcunha, ele ou ela é temido, incompreendido, admirado, execrado. Todos os títulos lhe servem, todas as atribuições lhe descrevem, onipresente e atemporal. É o inegável centro das atenções, sentimentos e reações.

E, diga-se de passagem, estas são muitas. Das bananas jogadas no campo às balas de borracha; dos hashtags de repúdio às paneladas de varanda; dos textos imensos com relatos inverídicos aos pedidos de retorno da era militar; dos dedos enfiados em ânus alheios no teatro aos bailes de reprodução da juventude; das exclamações em nome da pátria e de Deus (qual deles?) às dramáticas menções de luto por sutilezas inexistentes no panorama nacional. Todos querem se exaltar... Alguns mais do que outros.

Ouve-se vaias e ovações. Intensas, patrióticas, revolucionárias. Cada clamor enfeitado com ofensas, cada agressão legitimada por um direito. O discurso rival sempre com mais ódio do que o próprio. Uma profusão de jargões ensaiados, estritamente fiéis à cartilha. "Fulano-mito." "Amor, por favor." E uma miríade de xingamentos tragicômicos que se apropriaram injustamente das alcunhas de amáveis quitutes.

E lá no fundo, sentadinha em um banquinho de três pernas, assistindo timidamente o show de horrores, está a Dona Coerência. Única indivídua verdadeiramente deslocada do local.

Sempre mencionada em cada número do espetáculo e nas resenhas aparvalhadas do público, nunca tem seu direito à palavra. Ela fala baixo, com passividade, e, ousa-se dizer, de modo tão claro e inteligente que soa como se proferisse apenas aforismos. Não gosta de se ater ao conteúdo das cartilhas, então poucos acompanham suas músicas.

Mas de todas as peculiaridades deste circo, ao qual chamamos de Brasil, há um elemento que mais se destaca dos demais: os palhaços é que ocupam a plateia.

Em meio a risos e choros, a maioria dos quais encenados, não há um que não esteja devidamente maquiado e praticando ativamente o ofício. Alguns de vermelho, outros de verde e amarelo, todos com atribuições similares. Muitos há tanto tempo na labuta que nem se dão mais conta de seus papéis. Ora levando a rir, ora deprimir, ora fazendo questionarmos sobre como cabem tantos em um espaço tão diminuto.

E o principal: sempre fingindo ser alguém com total domínio sobre algo que lhes escapa.

Sentaram-se há tanto tempo pra assistir o show, que esqueceram ser parte essencial dele.

Mas se este majestoso espetáculo não lhe fizer sorrir, por favor, não saia do papel. Volte ao seu assento numerado, compre mais pipoca e assista quietinho ao restante da atração.

Parece que acabaram de colocar uma tal de Democracia sob os holofotes, e seria um bom momento pra todos ficarem atentos ao que vem por aí. O elenco acabou de mudar. E ela está bem viva, apesar de verdadeiramente confusa.

Aprecie um espetáculo que parece a reprise do show que ninguém nunca viu até o final.

E lembre-se: você pode se sentar à esquerda ou à direita, não importa. Nós só queremos o seu dinheiro.

17 fevereiro, 2019

Chuva

"Porque a morte é como a chuva. O homem precisa libertar-se da estagnação de sua alma parada. Quando o recipiente não suporta mais os resíduos e sua essência se torna incapaz de matar a própria sede, deve-se chover de novo. E de vidas em vidas segue-se o ciclo."

16 novembro, 2018

Leitura

Antes eu achava que éramos todos pessoas impossíveis de sermos resumidas em uma página só. Desde criança eu sempre tive o hábito de, ao começar a ler um livro novo, sempre abrir na última página e ler a última linha da história. Acho que isso sempre foi meio que uma simpatia da minha parte. Um ritual próprio, íntimo e não-justificado. Claro que as vezes eu tomava um ou dois spoilers. E confesso que uma vez destruí o grande plot twist de uma das histórias fazendo isso. Mas hoje eu percebo que não quero tomar spoilers ou me afobar pra última linha. Pelo contrário. Eu quero digerir cada palavra de cada página que leio, até o sentido delas seja tão natural pra mim, que a escolha delas me pareçam óbvio. Quero repetir a sonoridade delas até perderem o sentido. E ainda assim, quero devorar o livro de trás pra frente. Acho que percebi que eu vivo parte da vida assim. Hora querendo destruir as narrativas anacronicamente. Hora desacelerando o momento até ele se tornar estático e imutável. Se isso é certo ou errado, só vou descobrir quando virar a página. Acho que precisamos, independente da forma como vivemos, sempre nos prontificarmos a virar essas páginas. Mesmo voltando atrás pra reler e reforçar nosso entendimento, mesmo pulando páginas adiante para nos informarmos com o que há de vir. Hoje acho que sim, somos pessoas de uma página só. Mas essa página se reescreve cada vez em que nos viramos adiante. A mão é a mesma, mas torna-se mais hábil. A tinta vai se esvaindo, mas aprendemos a usar ela sem borrar tanto. E nossa intimidade com a textura do papel vai se aprimorando, mesmo quando esse se suja e rasga. Espero poder escrever mais. Nesta e em outras páginas.

03 outubro, 2017

Está Aqui

Tardei a entender quando tive contato com ela pela primeira vez. A inércia quase inquebrável, involuntária.

Na idade média, chamavam-na de Acídia. A preguiça da alma. Virou pecado capital nas mãos de São Tomás de Aquino. Hoje acham que a "preguiça" hedonista e indulgente é o tal pecado, mas o caminho para o inferno não é tão simplório neste caso.

Eu não entendia quem era abraçado por ela. Parecia algo distante, improvável. Pessoas que amavam seus afazeres não os quererem mais. E logicamente isto vai além: os problemas e necessidades se desenvolvem, mas o indivíduo fica estagnado.

É impossível entender até que a sinta. Verdadeiramente impossível, mas inconfundível após aceitar seu nome. Hoje eu a conheço bem. E tem sido uma luta levantar da cama todos os dias.

As louças se acumulam, as luzes de casa ficam apagadas, e as roupas ficam no lugar em que você as tira. As vezes por dias. Nada disso importa. Os problemas vão sendo perigosamente ignorados. A saúde começa a te alertar, antes que deteriore. E as obrigações vão amontoando. Mas falta coragem pra olhar. Abrir um e-mail com reclamações é como abrir uma ferida infeccionada. Um telefone tocando, ou lhe acelera o coração de modo irracional e torturante, ou é prontamente ignorado, independentemente da urgência. Você não está mais ali.

Daí você não quer se tratar, ora porque não tem forças sozinho, ora porque não aceita ser algo desse nível. Em suma, porque não acreditamos que isso exista até que a doença se instale. E até que ela assim seja nomeada: doença. Mas ela não surge como uma tosse incômoda, que se manifesta em uma manhã. Ela vem como um hábito ruim que você foi adquirindo sem perceber. Um vício sem prazeres.

E embora soe dramático falar dela, de todas as tristezas é a única que não abraça a poesia. Tanto por não haver plateia, quanto por não haver espaço pra mais nada depois de se instalar. Onipotente, onipresente. Você se torna ela.

Fui diagnosticado semana passado de algo que já sabia ter. Mas antes eram só um nome sem profundidade e um sentimento sem definição. Hoje conheço a face de cada um.

Não sei como lutar contra algo invisível. Não sinto vontade. Não sinto motivos. Não me sinto vivo. Simplesmente não sinto nada.

Mas sei que lá no fundo, todas as coisas que não sinto ainda existem. Pois ela ainda não se tornou meu Eu. Vou lutar com a parte invisível de meu ser. As razões e as amarras mais fortes que tenho pra viver.

Fazer a Depressão voltar a ser apenas uma palavra de significado distante. E tornar toda forma de tristeza novamente digna de uma poesia.

Quero acreditar nisso, como não acreditava nela.